quarta-feira, 30 de abril de 2014

Versos de chuva

Uma vez, um versador qualquer, falando sobre a falta que fazia a sua amada, disse-lhe que a chuva nada mais era que o céu desaguando suas lágrimas de saudade. Ela riu do seu exagero, sempre o viu como um homem que, de tanto que guardara seu amor para si, trazia consigo toda a poesia que aprisionara em seu peito. Mas não se vive de poesia.

A utopia dos sonhadores os levam a versos e prosas descompassados. Não em sua riqueza de detalhes ou sutileza de suas vozes, mas na carência de sentidos. Presos em aviltes mãos, as escritas que, de tanto buscarem nuances de perfeição, esquecem que à musa que lhe coube a inspiração, seus devaneios tolos podem não passar de meras palavras soltas. Nem em toda vastidão do universo caberiam versos suficientes para serenarem um coração que escolhera a solitude como sua companheira. Arranca-lhe sorrisos, talvez um olhar de compaixão ou complacência ao frustrado poeta, mas não o fulgor de seu coração.

Ao pobre versador, cabe-lhe seu caderninho de versos, a pena e o tinteiro fantasiados em moldes modernos sobre a escrivaninha e a companhia de seus malfadados poemas incompreendidos. Quanto à saudade de sua amada, pobre pensador, de tanto chover em si, afogar-se-á em suas lágrimas e nem suas poesias errantes o salvarão do triste fim do seu coração infausto.



terça-feira, 29 de abril de 2014

Não somos todos macacos

Desculpem-me os pseudo intelectuais, mas eu afirmo com veemência: Eu não sou macaco.

Negro, pobre, nascido na cidade de maior contingente negro fora da África, não me sinto representado por ninguém que segure uma banana e reproduza a hashtag "Somos todos macacos". Brancos, negros, índios, cáucasos, não importa a sua etnia, mas nós não merecemos ser chamados de macacos e nem, muito menos, dar como resposta essa atitude desprovida de senso crítico. Macacos, ainda que sejam a etapa anterior no processo evolutivo darwiniano do homem, são seres irracionais e incapazes de responderem a estímulos externos que os discriminem de algum modo.

Não me sinto representado pelos atores e apresentadores brancos da Globo que seguram suas plaquinhas cheias de esnobismo. Não me sinto representado por jogadores de futebol, ainda que negros, que ganham milhões de dólares por ano e que não sofrem preconceito na fila do banco, andando no shopping, pegando um ônibus, numa entrevista de emprego ou, simplesmente, atravessando uma rua. Não me sinto representado por pessoas comuns e anônimas que, para posarem de reacionários e monistas, só porque um jogador sei-lá-quem tirou foto assim, se acha dentro de uma tendência mundial na campanha contra o racismo.

A estigmatização do negro enquanto subproduto humano, enraizado na sociedade desde sempre, somente é reafirmada com essa campanha absurda que as pessoas tem feito. Não se dão conta quão ridículo é posar com uma banana na mão como se fosse um símbolo de poder e vanglória, como se não tivesse a mínima noção da realidade que, quem sofre com o racismo, vive diariamente.



sábado, 26 de abril de 2014

Retalhos

"Parado diante do espelho, não mais se reconhecia. Sua barba espessa cobria-lhe quase a metade do rosto. Seus cabelos acinzentados caíam sobre os ombros vestidos pela mesma camisa desbotada do dia anterior. Olheiras tão profundas e escuras das noites perdidas na varanda de sua casa a espera sabe-se lá de que. O café e o cigarro lhe amarelaram os dentes e deixaram um gosto amargo em sua boca. Seus olhos azuis, antes tão cheios de vida, hoje viviam mareados das lágrimas sofridas desde aquele último adeus. Sua pele pálida contrastava com o sol que teimava em invadir sua janela como se tentasse arrancá-lo de dentro daquele casulo. Perdera cinco, talvez dez quilos. Ou talvez ganhara. Não se lembrava mais como era seu próprio corpo. 

Sua casa cheirava a mofo. Não pelos objetos antigos, dos quais nunca se desfizera, mas pelos canos sob as paredes que envelheceram junto com ele. Seu violão desafinado acumulava poeira no canto da sala. Sua televisão já nem ligava mais. Suas únicas companhias eram o velho rádio valvulado, herança de seu pai, e um cão vira-lata que dormia em sua varanda de vez em quando. Por ele ainda conseguia ensaiar alguns sorrisos. Vivia de umas economias guardadas e da ajuda de uma vizinha, uma velha senhora que lhe levava uma ou outra refeição. Talvez por pena. Nunca lhe perguntou o motivo de sua solidão. Tinha dele somente um "obrigado" e a visão de um porta-retrato na estante da sala. Na foto, ele num raro sorriso, uma jovem mulher e um garoto. Numa manhã qualquer de inverno, enquanto uma fina chuva precipitava-se sobre seu jardim, aquele homem sucumbiu ao frio que se instalara em seu peito. Morreu sem ter conhecida a sua história, morreu na lembrança de seu último adeus".


quinta-feira, 24 de abril de 2014

Quanto tempo dura um mês?

"Pedro vivia dentro do mundo que ele mesmo criou. As pessoas entravam e saíam da sua vida com a mesma velocidade. Sentia realmente que era diferente, não se importava com o que os outros poderiam dizer sobre o seu modo de encarar a vida. Eram beijos lascivos, corpos desnudos, sinésteses superficiais, seus pudores morreram junto com a sua última dose de uísque num março qualquer. Airou-se e cansou. Enraizado dentro do seu próprio ser, fechou-se para quem não poderia te oferecer mais que um sorriso vazio e uma taça de um vinho qualquer. E assim levou-se por algum tempo até que, por obra do acaso, encontrou Alba. Encantou-se. Encantaram-se. Ela cansada de amores vazios e ele de amores vadios. Viveram sensações que, até então, jamais haviam experimentado. Encontraram-se e beijaram-se e amaram-se e... ela disse adeus. Durou o tempo da Lua mostrar suas quatro faces. Durou o tempo para que lhe fosse inesquecível".

Nossa vida costuma ser marcada por lembranças que ficarão guardadas na memória eternamente. Pessoas, lugares, fatos, momentos, tudo é passível de angariar um espaço dentro de nós. Viver intensamente esses fatores acaba sendo uma via de dois extremos. Ou se entrega até que a sua alma pertença àquele mundo e cuja reciprocidade lhe faz sentir-se ainda mais incontido dentro de si, ou o universo que você construiu dentro da idéia da perfeição daquele instante, te dá uma rasteira que lhe faz cair em câmera lenta vendo tudo o que viveu passar diante do seu nariz como um falso cristal. Quebra-se, espatifa-se e demora tanto para juntar novamente os cacos. Mas junta-se. A vida é para correr riscos, não há espaços para arrependimentos. No máximo reconstruir-se ainda mais forte, ainda mais sábio. Reconstruir-se.

"No fundo Pedro ainda tinha uma vã esperança de que ele apenas sonhara. Não o encontro, mas o adeus. E que, desta vez, a Lua fosse mera espectadora do que Alba guardara para ele. Não foi um adeus, reconstruíra-se, era um até breve".


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Sobre estar só

"Sob o olhar atento de casais que desfilavam a utopia de uma falsa felicidade, deitada à sombra de uma amendoeira, a garota de sorriso fácil refastelava-se em Bandeira num regozijo quase orgástico".

Estamos acostumados a encarar os relacionamentos amorosos como sendo um decurso natural da vida. Ao menos é o que a sociedade sempre buscou deixar bem claro. A visão conservadora perpassada entre gerações, qualifica a existência da felicidade intimamente ligada ao estado civil do indivíduo. "Como vai o coração?", pergunta típica dos encontros familiares dominicais, não é somente uma curiosidade quanto a estar com alguém ou não. Por trás desse questionamento há uma série de elos que se unem até formar o ciclo da existência humana que aprendemos na infância nas aulas de ciência: nascer, crescer, reproduzir-se e morrer. Sim, no final das contas não é realmente a sua felicidade que importa, mas sua função reprodutora a fim de perpetuar a espécie. Mas o que faz pensar que, para ser feliz, há de se viver ao lado de alguém? Em uma lógica do evolucionismo darwiniano, o indivíduo contemporâneo opta por exercer o seu direito à individualidade. O autoconhecimento é o primeiro passo para se alcançar a felicidade. A partir disso, no decurso da vida, suas aptidões pessoais, planos, anseios, necessidade, respostas, tomam para si os valores a serem descobertos e vivenciados e, aí sim, em segundo ou terceiro plano, pode-se pensar em compartilhar sua vida ao lado de alguém. Lembre-se: compartilhar, nunca dividir. Somos seres completos por natureza e buscamos o equilíbrio sobre as vertentes que margeiam nossa vida. Assim também funciona quando a compartilhamos com outros indivíduos.

Talvez aqueles casais que te vejam à sombra da amendoeira namorando Bandeira, coitados, tenham inveja do que veem. Precisam um do outro para se completarem, incapazes de se equilibrarem dentro de si mesmos.


segunda-feira, 21 de abril de 2014

Sonho de Ícaro II

Paixões são como asas. Ao contrário do que muitos pensam, elas não te prendem, mas te libertam, transformando-nos em seres alados e nos dando a liberdade de voarmos até o infinito e voltarmos quantas vezes quisermos. São essas asas que nos permitem viver novos encantos, novos lugares, novas histórias. São elas que nos aproximam de um ideal de felicidade que buscamos com tanto afinco, em que basta um ruflar de suas penas, nos paralisam como num encanto mágico. Ruborizam nossa face, petrificam aquele sorriso bobo no rosto, aceleram o coração e evidenciam o nervosismo em qualquer simples frase.

Construímos sonhos sobre pessoas normais enxergando-as extraordinárias. Mas sim, elas são extraordinárias. Nossos olhos as vêem desta forma. A paixão nos cega, nos faz ultrapassar os limites do que é tangível e faz com que as imperfeições sejam deixadas de lado. Não que elas não importem, mas se reconhece que as qualidades superam os defeitos. Agimos por impulso numa necessidade de satisfazer os desejos da outra pessoa, não como uma forma de submissão, mas de puro preciosismo da conquista de um sorriso. Há de se manter o equilíbrio. Impulso... eis o grande vilão das paixões. A vontade de realizar mais do que deveria, faz com que cometamos atos impensados e, em alguns casos prejudiciais. A nós, a vós, a eles(as). De repente a pessoa te pede um tempo e você, sem pensar direito, aparece na porta da casa dela dizendo que só queria dar um "oi"! Tolo! Agora pede desculpa e diz que deu mancada. O impulso acaba de te levar para longe no momento que você resolveu chegar mais perto. Nem sempre suas asas irão te conduzir ao caminho desejado. A paixão tem o tino de gerar conflitos entre a mente e o coração. Dentro de si ou descompassando a relação. Não existe paixão que dure para sempre, é quando a mente finalmente ganha essa batalha contra o desastrado coração, é quando suas asas te levam aonde você não deveria chegar.

Paixões são finitas. Terminam por inanição ou por decreto. Se espera deslizar por entre os dedos como um punhado de areia ou por se voar alto demais por algo inexistente. Somos alados como no sonho de Ícaro. Tão cegos e absortos em um mundo perfeito criado por nossa mente, que esquecemos serem feitas de cera as nossas asas. O Sol nada mais é que o fim do sonho, o que derrete suas asas e te joga de volta ao mar da realidade.