sexta-feira, 27 de junho de 2014

Resposta ao tempo

(Para ouvir enquanto lê: Upside Down - Jack Johnson)









Tenho pressa de viver. Mas, por mais contraditório que pareça, prefiro andar devagar. Contemplo a vida. Gosto de viver cada instante como sendo o único, o amanhã pode nunca chegar, por isso a pressa pela vida mesmo a passos lentos. Não leio rótulos de vidros de azeitona no mercado (odeio azeitonas com toda a força do meu ser), nunca sei quando vem ou não com caroço. Mas quando certos olhos me fascinam, se sorriem de mansinho ou se se enchem de desejo, sei a hora certa de provocá-los ainda mais. Posso cair no mesmo buraco da calçada dez vezes em uma semana, mas, nas curvas dos lábios quais beijo, sempre me perco de propósito só para percorrê-los mais uma centena de vezes.

Caminho sozinho a maior parte do tempo. As pessoas ainda não aprenderam a enxergar o mundo do mesmo modo que eu enxergo. Longe de mim dizer que é uma falha deles. Mas, tem horas que fugir do estado racional é necessário para que a vida se transforme. Quando aprendi a andar devagar, "muitos passaram, eu passarinho". Conheci melhor a mim mesmo. Criei asas e voei baixinho sem hora pra voltar. Sim! Voei baixo... o suficiente para que, os que não tivessem asas, caminhassem ao meu lado. De lá do alto é sempre mais bonito, mas de que adianta ser alado se não puder compartilhar das coisas que vejo? Não quero o tempo como meu adversário, correr contra ou atrás dele. Quero-o como companheiro. Andar de mãos dadas, vê-lo passar devagar contando conchas, catando estrelas, amando auroras. Não suporto a idéia de pensar que o tempo apaga as lembranças da memória. Talvez por isso eu ande devagar, ainda que as alternâncias da vida sejam constantes, tudo o que ficou de bom por onde passei não se abala, nada apaga.

O bom de ter o tempo como companheiro é que, a qualquer instante, se pararmos, ele para junto. Se corrermos, também corre junto. Só não há como retroceder, por isso eu espero. Tenho andado a passos lentos para que, quem em algum momento tenha ficado pelo caminho, possa me alcançar. A vida é curta para se perder nos rótulos dos potes de azeitona. Saber contemplar o que realmente importa é o que faz ela valer à pena.



terça-feira, 10 de junho de 2014

Depois da meia-noite

(Para ouvir enquanto lê: Another Lonely Day - Ben Harper)






Ontem à noite senti a sua falta. Era uma noite qualquer, igual a várias que a antecederam. Algumas nuvens no céu, o cheiro de chuva se anunciando um pouco mais distante, a rua de poucos carros passando... Eram 22, talvez 23 horas, não sei bem. Poderia ser alta madrugada que eu não sentiria. Ontem à noite o tempo parecia passar devagar. Os ponteiros do relógio vagavam pelo quarto como plumas arrastadas pelo vento. Não havia direções... ou eram todas as possíveis. Descompassado sobre a estante com o tic-tac abafado pela chuva que se aproximava, o relógio parecia seguir os batimentos em meu peito.

A caneca de café que você me deu, repousava sobre a mesa do computador. Aquela mesma que você comprou numa venda de garagem em sua viagem para São Paulo. Dizia que parecia comigo. Um rosto de barba de um lado, grãos de café em forma de coração do outro. A fumaça me embaçava os óculos. Meus olhos castanhos e pequenos, que quase sumiam sob o rosto quando me fazia rir, surgiam. Olhos que brilhavam toda vez que você soltava seus longos cabelos negros. Olhos que se fechavam toda vez que seus lábios encontravam os meus. O mundo parava, as horas paravam, o coração não. Batia mais forte. Pulava no peito, como se, a qualquer momento, fosse saltar sobre suas mãos e dissesse - Cuida! -. Vermelho, pulsante. A chuva já se precipitava janela a dentro. Ensaiei levantar para fechá-la, mas o som dos pingos sobre a sacada me anestesiaram. A saudade de você me dominou o peito como o vento frio que, sem pedir licença, invadiu o quarto. Era uma saudade estranha. Não daquelas nostálgicas do que fomos, mas do que poderíamos ter sido. Não do primeiro dia que nos vimos, nos beijamos, que começamos a namorar. Mas dos seus sorrisos que deixavam de serem refletidos em minh'alma. Do gosto de seus lábios que não mais acariciavam os cantos de minha boca. Dos falsos planos que fazíamos juntos para um futuro distante. Não tínhamos certeza do amanhã, mas você sempre agradecia por te incluir, por mais loucos que fossem, nos meus sonhos mais longínquos. Ontem à noite senti muito a sua falta.

A chuva continuava a cair do lado de fora e dentro de mim. Já passava da meia-noite, talvez uma, duas horas da madrugada. A rua silenciara sem o movimento dos carros e pessoas. O tic-tac do relógio em compasso com meu peito me mostrava que era hora de recolher o corpo. O coração não. Seu repouso tinha como morada o mesmo colo que a saudade teimava em trazer de volta. Era seu outra vez.







terça-feira, 3 de junho de 2014

O que os olhos não veem

Andava pelos bares da vida. Entre uma cerveja e outra, lembrava daquele último romance que tanto o marcou. De fato, não esquecera por completo. Ou nem pela metade. Talvez ainda vivesse diariamente a ode de um amor que se foi e levou seu eu junto. Era seu corpo que perambulava pela vida. Vivia. Como qualquer outra pessoa que cruzava seu caminho, ele vivia. Cada um com seus medos, problemas, com suas idéias, convicções... Mas para ele faltava algo. Aliás, dentro dele algo se fazia ausente. Se em sua mente a imagem dela ainda era constante, nele havia algo que se perdera no caminho.

Festas vazias e cheias de gente. Beijos intensos sem gosto algum. Corpos desnudos que não arrepiavam-lhe a pele. Não deixava de sorrir jamais. O reflexo de sua alma não precisava estar estampado em capas de jornais. Vestia o seu melhor sorriso e desfilava o que as pessoas queriam ver. Por dentro, só ele sabia quantas feridas ainda precisavam ser cicatrizadas. Buscou novas histórias, novos caminhos, novos amores... mas quando fechava os olhos, era no mesmo lugar que sonhava em estar. Abria-os. De repente era o olhar dela nos outdoors espalhados pela cidade. Era o sorriso dela nos rostos das moças que flertavam na mesa ao lado. Era o jeito dela de mexer no cabelo num corpo qualquer ao qual se entregava pela noite adentro. Ele gelava. Sorria e lembrava. Acordava. Não, não era ela. Pagava outra cerveja, acendia o cigarro e partia. Algo se perdera no caminho.

Ele jamais lutou para esquecê-la. Seria uma dessas batalhas desleais, um único homem contra um exército de lembranças. Ele vai continuar se encontrando pelos bares, pelos lábios, pelos corpos. Se encontrando com o eu que ele não reconhece. Pelo caminho, algo se perdera. Mas ele sabia onde... sabia a rua, a casa, sobre qual mesa. O que os olhos não veem, só ele quem sente. Seu coração ainda pulsava no mesmo lugar.