sábado, 26 de abril de 2014

Retalhos

"Parado diante do espelho, não mais se reconhecia. Sua barba espessa cobria-lhe quase a metade do rosto. Seus cabelos acinzentados caíam sobre os ombros vestidos pela mesma camisa desbotada do dia anterior. Olheiras tão profundas e escuras das noites perdidas na varanda de sua casa a espera sabe-se lá de que. O café e o cigarro lhe amarelaram os dentes e deixaram um gosto amargo em sua boca. Seus olhos azuis, antes tão cheios de vida, hoje viviam mareados das lágrimas sofridas desde aquele último adeus. Sua pele pálida contrastava com o sol que teimava em invadir sua janela como se tentasse arrancá-lo de dentro daquele casulo. Perdera cinco, talvez dez quilos. Ou talvez ganhara. Não se lembrava mais como era seu próprio corpo. 

Sua casa cheirava a mofo. Não pelos objetos antigos, dos quais nunca se desfizera, mas pelos canos sob as paredes que envelheceram junto com ele. Seu violão desafinado acumulava poeira no canto da sala. Sua televisão já nem ligava mais. Suas únicas companhias eram o velho rádio valvulado, herança de seu pai, e um cão vira-lata que dormia em sua varanda de vez em quando. Por ele ainda conseguia ensaiar alguns sorrisos. Vivia de umas economias guardadas e da ajuda de uma vizinha, uma velha senhora que lhe levava uma ou outra refeição. Talvez por pena. Nunca lhe perguntou o motivo de sua solidão. Tinha dele somente um "obrigado" e a visão de um porta-retrato na estante da sala. Na foto, ele num raro sorriso, uma jovem mulher e um garoto. Numa manhã qualquer de inverno, enquanto uma fina chuva precipitava-se sobre seu jardim, aquele homem sucumbiu ao frio que se instalara em seu peito. Morreu sem ter conhecida a sua história, morreu na lembrança de seu último adeus".


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